A PAZ DO SENHOR!

DANIEL BERG - UM PIONEIRO PENTECOSTAL (1884-1963)

Ao se aproximar do Oceano Atlântico, o rio Amazonas divide-se à
direita e à esquerda. Nesse trecho, alarga-se muito e recebe, à direita, o
nome de rio Pará, formando o amplo espaço aquático da baía de Marajó,
desaguando em seguida no oceano. Para alcançar Belém, capital do Estado
do Pará, os navios vindos do Atlântico penetram a baía e navegam as águas
em sentido contrário ao curso do rio, aproximando-se do porto da cidade
pela margem esquerda.
No dia 19 de novembro de 1910, dezenas de pessoas acompanhavam
as manobras de navegação de um grande navio que se aproximava do Cais
de Belém. A realização de várias atividades portuárias naquela manhã não
permitiu que o navio Clement atracasse no cais. Por esse motivo, um barco
foi enviado para transportar os passageiros do navio que chegara de Nova
Iorque e acabara de lançar âncora ao largo do porto.
Quando o barco se aproximou do cais, trazendo os passageiros, um
grupo de homens, mulheres e crianças começou a acenar, a sorrir, a gritar,
a bater palmas, a pronunciar nomes, numa efusão de alegria
autenticamente brasileira. Ao desembarcarem, os passageiros viram-se
rodeados pelos parentes e amigos, que, entre palavras, sorrisos e abraços,
ajudavam-nos a levar a bagagem. Quando quase todos já haviam
desembarcados, dois homens, empunhando firmemente as alças de suas
malas, pisaram solenemente na plataforma do cais. Não havia ninguém à
espera deles. Porém, o desembarque desses dois estrangeiros em solo
brasileiro, numa clara manhã de novembro, terá em breve um grandioso
significado para a história do Movimento Pentecostal no Brasil.
Nesse momento, os pés desses dois homens estão a pisar firmemente
o solo de um país que eles ainda desconhecem, mas em breve aqueles pés
tornar-se-ão cansados e feridos, porém formosos sobre os montes, pedras,
selvas, espinhos e cidades brasileiras, quando os dois missionários saírem
a anunciar as Boas-novas de salvação. Aqueles dois homens ainda não
entendem nenhuma palavra da língua portuguesa, mas são capazes vde
falar em mistério com Deus. Ambos não refletem em seus semblantes a
alegria que se vê estampada nos rostos amorenados dos homens, mulheres
e crianças que falam alto, se abraçam e se afastam do cais, mas nos
corações daqueles dois estrangeiros arde a chama do Espírito Santo, um
fogo suficiente para produzir cânticos e júbilos tão intensos, .que em breve
irromperão nos lábios e nos corações das primeiras almas resgatadas das
trevas para fazerem parte do grande rebanho da Assembléia de Deus no
Brasil.
Nascidos na Suécia, eles embarcaram em Nova Iorque naquele navio
desconfortável que acabara de chegar a Belém. Além da grande fé que
trazem nos corações, e da pouca bagagem contida em suas malas, eles
dispõem de uma quantia tão pequena de dinheiro, que não lhes permite
aceitar que os carregadores transportem suas malas.
Um deles é alto, forte, pele clara, cabelos e bigodes escuros, olhar
sereno e decidido. O outro é de estatura mediana, loiro, olhos azuis, a olhar
com firmeza e serenidade para todas as coisas. O mais alto chama-se
Daniel Berg. O outro, Gunnar Vingren. Ambos foram enviados por Deus
para trazer o Pentecoste ao Brasil.
Quando ainda estavam em Nova Iorque, Daniel e Vingren haviam
decidido comprar passagens de terceira classe, a fim de economizarem o
pouco dinheiro de que dispunham. Conseqüentemente, quase não
puderam se alimentar durante a viagem, pois a comida que serviam aos
passageiros dessa classe era de má qualidade. Por esse motivo, ao se
distanciarem do cais, a primeira resolução que tomaram foi localizar.um
restaurante, quando então, e pela primeira vez, puderam servir-se de
pratos autenticamente brasileiros.
Após saírem do restaurante, Vingren perguntou a Daniel:
- E agora Daniel, para onde vamos?
- Vamos subir por esta rua, Vingren, e certamente Deus nos orientará
sobre o que devemos fazer.
A cidade eterna
Carregando suas malas, os dois embaixadores do Deus Altíssimo
começaram a subir lentamente a rua. Tudo o que viam ali era infinitamente
diferente do que tinham visto nos Estados Unidos e na Suécia. As torres
altas das belas casas em estilo colonial contrastavam com os casebres
extremamente pobres que circundavam a cidade. Ruas pedregosas e
poeirentas se ramificavam em várias direções opostas ao rio. Transitando
normalmente por essas ruas, vários leprosos, que haviam acorrido à Belém
ao ouvirem dizer que naquela cidade fora descoberta a cura da lepra, expunham
ao olhar dos transeuntes os seus corpos mutilados pela doença. Ao
contemplarem este quadro doloroso, um sentimento de compaixão e de
amor invadiu os seus corações.
Enquanto caminhava observando a paisagem que se estendia adiante
dos seus olhos, é provável que Daniel Berg tenha-se lembrado de sua
pequena cidade natal, Vargon. Certamente, nada havia em comum entre
aquela que era conhecida na Suécia como "a Ilha do Lobo", e a cidade de
Belém. Porém, ao contemplar aquelas ruas e aqueles homens e mulheres
curiosos, muitos deles pobremente vestidos, a andarem para lá e para cá
como ovelhas desgarradas que não têm pastor, Daniel Berg deve ter-se
lembrado dos montes, das fontes abundantes e dos lagos cristalinos de
Vargon, a cidade montanhosa, o lugar predileto dos reis da Suécia para a
realização de caçadas.
E certamente naquela hora desejou falar àquele povo da existência de
um lugar muito diferente de Belém, e até mais belo e infinitamente mais
vasto do que sua cidade natal; um lugar onde não há ruas pedregosas e
acidentadas, nem casas mal iluminadas e pobres, ou pessoas sem mãos,
sem orelhas, sem nariz e sem dedos a andar pelas ruas.
Ele lhes falaria da Jerusalém Celestial, a pátria eterna de todos os
que aceitam a Jesus como Salvador, e guardam sua Palavra no coração; a
Cidade das Doze Portas, em cujas ruas de ouro e cristal, em tempo sempre
sereno e claríssimo, brilha o Sol da Justiça; onde, quando se iniciar o
jubileu das eternas bem-aventuranças, os salvos e remidos pelo sangue do
Cordeiro viverão eternamente nas amplíssimas regiões celestiais.
Primeiras referências sobre os evangélicos
Após andarem durante algum tempo, os missionários resolveram
sentar-se em um banco de jardim, e ali fazer uma oração. Em seguida
sentiram desejo de voltar na direção do porto. Uma família que também
viajara no navio Clement, e falava inglês, os encontrou e lhes indicou um
hotel. Ali os missionários entraram em contato com outra pessoa que
também falava inglês, e esta informou que conhecia um evangélico naquela
cidade, mas não sabia onde morava.
Já era noite. Os missionários trataram então de arranjar um quarto
naquele hotel. Ao fazerem um balanço de suas finanças, descobriram que
só dispunham de quatro dólares e alguns cêntimos. Não ficaram nada
surpresos ao saber que um quarto para duas pessoas custava 16 mil réis (o
equivalente, na época, a quatro dólares). Com o restante pagariam a
passagem de bonde no dia seguinte.
Ao se recolherem para dormir, Vingren deparou-se com um jornal
jogado no chão. Certamente o hóspede anterior o esquecera ali. Apesar de
não entender nada da língua portuguesa, o missionário passou a folheá-lo
assim mesmo. Súbito, gritou para Daniel:
- Aqui está, Daniel, a resposta de Deus! O redator deste jornal é o
irmão Justus Nelson, um pastor metodista que eu conheci na América do
Norte. Amanhã nós iremos procurá-lo, e ele certamente nos dará as
orientações de que necessitamos.
Naquela noite Daniel Berg e Gunnar Vingren elevaram seus corações
ao Onipotente e misericordioso Deus, e agradeceram o cuidado e o amor
que Ele estava tendo sobre suas vidas, e a direção e a paz que enchia seus
corações. Confiantes em Jesus, o sublime e seguro guia de suas almas,
adormeceram.
Em casa do pastor batista
No dia seguinte, após pedirem que Deus os conduzisse, tomaram o
café da manhã e saíram à procura do pastor metodista. Ao chegarem à
casa do irmão Justus Nelson, este os recebeu alegremente. Após contarlhes
as muitas experiências que vivera ali, o irmão Nelson tratou de
conduzir os missionários ao pastor batista local, irmão Erik Nilson,
também de origem sueca.
Erik Nilson recebeu alegremente os seus compatriotas e irmãos na fé.
Quando soube que estavam hospedados em hotel, convidou-os a morar no
porão da igreja, e a auxiliá-lo nos trabalhos da igreja (Batista), em Belém,
situada na Rua João Balby, n" 406. Daniel e Vingren aceitaram o convite.
Voltaram para apanhar a pouca bagagem que lhes pertencia, e passaram a
morar em um corredor escuro e abafado.
A notícia de que dois missionários haviam recentemente chegado dos
Estados Unidos alcançou rapidamente as quatro igrejas evangélicas
existentes em Belém. E logo Daniel e Vingren passaram a visitar as igrejas,
pois todos queriam vê-los e ouvi-los. Em uma dessas igrejas, os
missionários cantaram em duas vozes o hino "Jesus Christ is made to me,
ali I need, ali I need" (Jesus Cristo é tudo para mim, tudo o que eu
necessito, tudo o que eu necessito), e o poder de Deus caiu
maravilhosamente sobre os irmãos!
Já em suas primeiras pregações, Daniel e Vingren passaram a falar
acerca do batismo com o Espírito Santo. Este assunto era novidade para
quase todos os crentes batistas, e para os das outras denominações
também. Porém, alguns deles já tinham ouvido ou lido anteriormente
acerca do assunto, mas não sabiam que a promessa do batismo com o
Espírito Santo era também para eles. Após a chegada dos missionários, o
número de ouvintes da Palavra de Deus aumentou rapidamente. Antes,
nem os cultos aos domingos conseguiam encher a metade do templo.
Quando Vingren e Daniel Berg passaram a tomar parte ativa nos trabalhos,
o templo da igreja Batista encheu de tal maneira que muita gente teve de
assistir aos cultos em pé.
Conhecendo os segredos da selva
Um mês após haverem chegado ao Pará, os missionários foram
convidados pelo irmão Adriano Nobre, que era membro da Igreja
Presbiteriana em Belém, para uma viagem à casa dos seus pais. Os pais de
Adriano moravam em uma localidade chamada Boca do Ipixuna. Ali os
seringueiros extraíam borracha. Durante três dias seguidos, Vingren e
Daniel viajaram de barco por diversos rios. Foi então que puderam entrar
em contato com aquela selva imensa, com árvores que pendiam seus
frondosos galhos para dentro dos rios; com belíssimas orquídeas e grandes
cipós arqueados como arcos de triunfo, a saudar o avanço dos dois servos
de Deus pelos mistérios da selva!
Árvores arrancadas pelas águas desciam lentamente na correnteza.
Derivando-se dos rios maiores, dezenas de afluentes abriam-se em leque,
serpenteando por entre a floresta, formando ilhas, alagadiços e igapós.
Abrindo o vôo, bandos de pássaros cortavam o límpido e sereno céu sobre
as selvas. No alto das árvores, subitamente, macacos pulavam com
agilidade de um galho para outro. Havia crocodilos nas margens dos rios,
borboletas coloridas que, aqui e ali, voavam no ar onde se respirava o
perfume agreste das flores tropicais. Mas também havia as pragas. O
carapanã (mosquito) atacava ao anoitecer e só dava tréguas pela manhã,
quando era substituído pela mutuca (espécie de mosca sanguessuga).
Curiosos e maravilhados diante do mundo de beleza e mistério que se
estendia diante dos seus olhos, os missionários ouviam, durante o dia,
cantos, silvos, urros e estalidos que contrastavam com o silêncio que, à
noite, caía sobre os animais adormecidos e ocultos entre as gigantescas
árvores.
Viajando por rios estreitos e largos, os missionários puderam
contemplar a beleza daquelas noites sossegadas, noites em que, no
plenilúnio, o majestoso luar se apossa do escuro azul do céu, e as estrelas
brilham à flor dos rios como um bando de aves de prata.
Quando se aproximaram da localidade onde moravam os pais de
Adriano Nobre, Vingren e Daniel viram, às margens dos rios, casas
erguidas sobre pilares de madeira - as palafitas. Ficaram felizes ao saber
que no interior de algumas delas moravam famílias evangélicas. Ali
participaram de pequenas reuniões de oração, onde puderam pregar a
Palavra de Deus e cantar em português alguns hinos decorados. Os missionários
comeram do que havia de melhor no interior daqueles humildes
lares: farinha, arroz, feijão sem sal, carne seca e café sem leite. No final de
um mês e meio, retornaram a Belém.
O primeiro batismo com o Espírito Santo
Para obterem dinheiro e poderem pagar um professor de português,
ficou tratado que Daniel voltaria a exercer o ofício de fundidor que
aprendera nos Estados Unidos, enquanto Vingren estudaria durante o dia.
À noite, Vingren ensinaria a Daniel o que aprendera. E assim, com muito
esforço, aprenderam o português. O salário de 12 mil réis por dia
proporcionou aos missionários condições de se manterem relativamente
bem e poderem comprar Bíblias e Novos Testamentos nos Estados Unidos.
Os irmãos passaram a visitar a moradia de Vingren e Berg, e no
decorrer do tempo, comprovaram que eles eram homens de oração e de fé,
e viviam o que pregavam. Nessa ocasião, os missionários ficaram sabendo
que muito antes de sua chegada a Belém, os diáconos da igreja Batista
estavam orando todos os sábados, pedindo a Deus que enviasse mais
missionários ao Brasil. Portanto, Daniel e Vingren eram considerados por
esses irmãos como resposta às suas orações.
Além do mais, o fato de os dois missionários viverem naquele porão
em condições tão precárias e continuarem sadios e dispostos a pregar a
Palavra de Deus a qualquer hora do dia ou da noite, era uma indiscutível
prova de que Deus os enviara.
Os irmãos que se reuniam na moradia dos missionários passaram a
receber com mais assiduidade ensinamentos acerca do batismo com o
Espírito Santo e da cura divina. No quartinho existente naquele porão, e
nos lares de alguns crentes da igreja Batista, vários cultos passaram a ser
realizados. Num desses cultos, Gunnar Vingren perguntou a uma irmã que
sofria de câncer nos lábios, se ela estava disposta a abandonar todos os
remédios que usava e crer que Jesus a podia curar naquele momento. Ela
respondeu que sim. Os irmãos oraram e o Senhor a curou completamente!
Aquela irmã chamava-se Celina de Albuquerque, e nos cultos de
adoração que se seguiram, ela começou a pedir a Jesus o batismo com o
Espírito Santo. Naquela mesma semana, após o culto de quinta-feira,
acompanhada da irmã Nazaré, ela continuou buscando a face do Senhor, e
à uma hora da madrugada, Jesus a batizou com o Espírito Santo e com
fogo, e ela falou durante mais de duas horas em outras línguas com Deus!
Segundo o que documentou Gunnar Vingren, "foi a primeira operação do
batismo com o Espírito Santo feita pelo Senhor Jesus Cristo em terras
brasileiras".
No outro dia, a irmã Nazaré, que vira a irmã Celina ser batizada,
relatou aos demais membros da igreja tudo o que testemunhara. Naquele
mesmo dia, orando em companhia de outras irmãs no local onde os
missionários realizavam cultos de oração, a irmã Nazaré também foi
batizada com o Espírito Santo, e cantou um hino no Espírito! Com exceção
de um evangelista e da esposa de um diácono, todos os demais irmãos que
testemunharam a manifestação do poder de Deus na vida daquelas duas
irmãs, creram que tudo aquilo era obra do Espírito Santo.
A visita do pastor e suas conseqüências
Certa noite, quando vários irmãos reunidos no porão onde moravam
os missionários, oravam e cantavam hinos de louvor a Deus, o pastor Erick
Nilson, para surpresa de todos, ali apareceu. Gunnar Vingren e Daniel Berg
já sabiam que ele não apoiava a doutrina do batismo com o Espírito Santo.
Nem ele nem Raimundo Nobre, que estava estudando para evangelista.
Sabiam também que o pastor Nilson, logo que chegara ao Brasil, começara
a pedir que Deus cumprisse nele essa promessa. Depois de catorze dias de
ele buscar a Deus, suplicando em todas as horas disponíveis do dia e da
noite que o Senhor o revestisse de poder, finalmente Deus começou a
derramar poder sobre ele, porém sua esposa, amedrontada, pediu-lhe que
parasse com ''aquilo", e não permitiu que ele recebesse a grandiosa
promessa. A partir de então, Nilson tornou-se inimigo da doutrina
pentecostal.
Quando o pastor entrou no recinto, os irmãos se levantaram para
saudá-lo. Fez-se total silêncio na sala. Os missionários convidaram-no a
participar do culto improvisado, mas ele recusou. Diante da surpresa e do
ligeiro temor de alguns irmãos, o pastor identificou com o olhar a cada um
dos crentes ali presentes, e disse:
- Vejo que chegou a hora de tomar uma decisão. Há algum tempo
venho observando discussões acerca de certas doutrinas que não admito
como certas. Isto nunca aconteceu desde que comecei a pastorear a igreja
aqui em Belém. Sei, contudo, que os responsáveis por essa situação são os
irmãos Gunnar Vingren e Daniel Berg, que, possuídos de um sentimento
separatista, têm semeado dúvidas e inquietação no seio da igreja.
- Irmão Erik Nilson, - respondeu imediatamente Gunnar Vingren -
Deus é testemunha de que não estamos aqui possuídos de nenhum
sentimento separatista, e nem desejamos a desunião dos irmãos. Pelo
contrário, queremos que todos sirvamos a Deus unidos no mesmo Espírito.
Porém, queremos aproveitar também este momento para tornar a afirmar
que, se todos alcançarmos a experiência do batismo com o Espírito Santo,
jamais nos dividiremos; seremos mais do que irmãos, seremos uma só
família.
Sei que a Bíblia fala acerca do batismo com o Espírito Santo e da
cura divina, - respondeu o pastor Nilson, já alterando o timbre da voz. -
Porém essas coisas foram para aquele tempo. Seria um absurdo que
pessoas bem informadas viessem a acreditar que isso possa acontecer em
nossos dias. Hoje, temos que ser realistas e procurar não nos envolver com
sonhos e falsas profecias. Quanto aos senhores missionários, se não vos
corrigirdes e reconhecerdes que estais errados, é meu dever comunicar a
todas as igrejas Batistas o que está acontecendo, para que se previnam
contra as vossas falsas doutrinas.
Gunnar Vingren e Daniel Berg ouviram tudo aquilo com a serenidade
que os caracterizava. Após todos ficarem em silêncio por alguns instantes,
Vingren tornou a falar. Afirmou lamentar muito que assuntos de tal
importância tivessem motivando uma discussão de caráter pessoal. Falou
também que todos ali eram servos de Deus, e pregavam acerca do mesmo
Deus. E finalmente concluiu:
- Na minha opinião, somos colegas, e não concorrentes. Saber-se
quem leva as almas a Deus é coisa secundária. O que importa é que o
número de almas salvas aumente cada vez mais. Não direi que o irmão não
esteja na verdade, mas afirmo que não achou toda a verdade. Nós pregamos
a verdade do batismo com o Espírito Santo e da cura divina, que
Jesus pode realizar ainda em nossos dias.
Daniel Berg
Após ouvir o que Vingren dissera, o pastor Erik Nilson encarou os
presentes. Todos os irmãos permaneciam em silêncio absoluto. Fitando os
rostos impassíveis e serenos, o pastor olhou firmemente para um diácono -
um dos mais antigos membros da igreja Batista em Belém - e esperou
encontrar nele o apoio que até então não encontrara em nenhum dos
irmãos presentes. Mas foi para surpresa do pastor Nilson que esse irmão,
em nome dos demais, disse:
- Agora somos pentecostais!
Pedindo inicialmente que o pastor Nilson não os considerasse
traidores do Evangelho, o diácono afirmou que os irmãos reunidos ali
jamais tinham tido tanta fé. A explicação para aquela mudança era que
eles haviam encontrado a fé e o poder do Espírito Santo!
- Não temos queixa, pastor, - falou o diácono - de antes o irmão não
nos haver falado acerca destas verdades, pois o senhor as desconhece e,
não as conhecendo, não nos poderia ensiná-las. Porém desejaríamos que o
irmão também recebesse estas bênçãos de Deus, a fim de nos entendermos
melhor, e podermos sentir a mesma comunhão uns com os outros. Todos
os irmãos aqui presentes encontram-se em um plano mais elevado, e mais
perto do Céu. O irmão disse que é realista; pois bem, vou citar agora
alguns casos reais ocorridos entre nós, algumas provas concretas do poder
de Deus em nosso meio.
O diácono passou a relatar vários casos de cura ocorridos entre os
irmãos. Certa irmã, que andava amparada por duas muletas, ouvia a
pregação dos missionários acerca da cura divina, e, orando com fé, fora
completamente curada! A irmã ainda usava as muletas, mas dependuradas
na parede de sua casa, em local bem visível, para que todos vissem de que
modo maravilhoso Jesus a curara! O caso da irmã Ce-lina também foi
citado, juntamente com outros.
- Caro pastor, - concluiu o diácono -não queremos nem podemos
acusá-lo de nada. 0 irmão tem trabalhado a fim de ganhar almas para
Jesus, tem orado para que Deus dê força aos enfermos, para que eles
possam suportar suas enfermidades, mas não orou para que Jesus os
curasse; tampouco nos doutrinou acerca do batismo com o Espírito Santo,
porque o senhor não crê nestas verdades. Porém, o irmão é testemunha
ocular de alguns casos que acabei de citar.
Após ouvir as surpreendentes palavras do diácono e concluir que não
encontraria ali o apoio de ninguém, o pastor Nilson dirigiu-se a Vingren e
Daniel, e lhes disse:
- Já tomei a decisão que tinha de tomar. A partir deste momento, os
senhores não podem mais ficar morando aqui. Procurem outro lugar;
depois de tudo o que aconteceu, não os quero mais neste porão.
Em seguida, dirigiu-se ao pequeno grupo de crentes e perguntou:
- Quantos estão de acordo com essas falsas doutrinas?
Dezoito pessoas levantaram suas mãos, e foram avisadas de que
seriam imediatamente excluídas de comunhão da igreja. Essa exclusão foi
ilegalmente efetivada pelo seminarista Raimundo Nobre.
Vingren e Daniel Berg agradeceram ao pastor Erik todos os favores
que este lhes havia prestado, e desejaram que em breve ele fosse também
alcançado pela bênção do batismo com o Espírito Santo. Sem dizer palavra,
o pastor virou-lhes as costas e retirou-se.
Surge a nova igreja
Os dois missionários estavam agora sem ter para onde ir. Porém não
se abalaram diante daquela situação. O Senhor Jesus, que os tinha
dirigido até aquele momento, certamente continuaria com eles e os
conduziria triunfalmente na gloriosa jornada que iniciavam. Antes mesmo
de Daniel e Vingren expressarem qualquer palavra com relação ao futuro
que lhes aguardava, um irmão se adiantou e falou em nome dos demais.
- Irmão Vingren e irmão Daniel, compreendemos a vossa
preocupação. Quero dizer, porem, que tenho à vossa disposição uma
grande sala em minha casa, que pode ser utilizada para realização de
cultos. Quanto ao problema da moradia, minha casa tem espaço suficiente
para ambos.
Felizes diante da imediata providência de Deus, os missionários
aceitaram o convite. Naquela mesma noite, na casa da irmã Celina de
Albuquerque, na rua Siqueira Mendes, 67, no dia 18 de junho de 1911, sob
a direção de Vingren e Daniel, foi realizado oficialmente o primeiro culto
pente-costal no Brasil. A igreja foi organizada com o nome de Missão de Fé
Apostólica.
E assim, sob o límpido céu equatorial, como trigo semeado entre
pedras e espinhos, alva e resplandecente como um lírio, começou a
florescer nas cidades e nas selvas do Pará e do Amazonas, a igreja que, em
11 de janeiro de 1918, seria denominada Assembléia de Deus. E nada,
nada conseguiu deter seu avanço. Ataques, acusações e folhetos caluniosos
só serviram para aumentar o número de pessoas que vinham assistir aos
cultos pentecostais e ouvir Gunnar Vingren e Daniel Berg falarem acerca
do batismo com o Espírito Santo e da cura divina, e sobretudo verem a
manifestação do poder de Deus entre os irmãos.
Colportando as sementes de vida eterna
Quando as Bíblias e os Novos Testamentos, pedidos por Daniel Berg,
chegaram dos Estados Unidos, iniciou-se então em Belém o que podemos
denominar de a primeira atividade de colportagem dos pentecostais. Para
desenvolver a colportagem a contento, Daniel Berg deixou o emprego na
fundição, e logo constatou que não era difícil vender sua preciosa mercadoria,
pois, naquela época, Bíblias e Novos Testamentos em português
eram raridade no Brasil. Ele saía pela manhã com sua maleta de colportor,
caminhando por ruas e estradas, batendo em dezenas de portas,
oferecendo Bíblias e Novos Testamentos, e ao mesmo tempo convidando as
pessoas a comparecerem ao culto, à noite.
E os frutos daquela semeadura começaram a surgir. Após crerem no
Evangelho de liberdade e transformação, homens que negociavam com
cigarros e bebidas alcoólicas queimavam essas mercadorias e passavam a
negociar em outro ramo de comercio. Ao crerem no poder de Jesus Cristo,
enfermos eram alcançados pela cura divina.
Para intensificar suas atividades de evangelismo e colportagem,
Daniel resolveu seguir ao longo da estrada de ferro Belém-Bragança, onde
dezenas de cidades e vilas jamais haviam sido evangelizadas. Após
despedir-se da igreja e de Gunnar Vingren, o qual estava desenvolvendo
um considerável ministério como pregador, dirigente e fundador de
trabalhos, Daniel Berg partiu, levando consigo duas malas cheias de
Bíblias, e no coração a poderosa chama do Espírito Santo. Partiu pouco antes
do amanhecer, quando pelos caminhos ainda soprava a brisa suave da
madrugada, e os pássaros saudavam docemente a pálida luz da aurora,
que pouco a pouco inundava a vastidão do céu.
Sabedores de que a Palavra da Verdade caminharia junto com aquele
homem destemido, e em breve resplandeceria em milhares de corações, os
padres daquelas cidades e vilas ordenaram que ninguém conversasse nem
acolhesse em suas casas um homem alto, forte, que carregava consigo
duas malas contendo livros e insistia sempre em conversar com aqueles a
quem se dirigia. Daniel entendeu rapidamente a situação. Ao andar pelas
ruas do primeiro lugarejo que encontrou no início de sua viagem, observou
que todos o olhavam, curiosos e apreensivos.
Após caminhar por algumas horas, o missionário resolveu descansar
sob uma frondosa árvore. Era quase meio-dia, e o calor se intensificara. Na
limpidez do céu azul, o sol brilhava implacável. Sob aquela sombra
acolhedora, Daniel pediu a Deus que interferisse poderosamente em seu favor,
esmiuçando as muralhas da descrença e penetrando na dureza dos
corações. Fez uma ligeira refeição e esperou que a leve brisa da tarde
começasse a soprar.
Deus o conduziu, da sombra daquela árvore a uma casa onde uma
senhora idosa jazia sobre o leito, gravemente enferma. E ali, entre velas e
algumas pessoas que rezavam ajoelhadas diante de uma imagem, Deus
manifestou o seu poder através de Daniel Berg. Ajoelhado à cabeceira da
cama daquela mulher que momentos antes havia sido desenganada pelo
médico, o missionário começou a conversar com a enferma.
- A senhora tem fé em Deus e em seu Filho Jesus Cristo?
Ela não pronunciou nenhuma palavra, mas acenou afirmativamente
com a cabeça.
- Afirmo-lhe que Jesus se encontra presente neste quarto e está
pronto a curá-la continuou Daniel. - A única coisa que a senhora tem a
fazer é crer nele. Desprenda-se da contemplação desta imagem, afaste o
seu pensamento dela e dirija-o a Jesus, agora. Foi para dar salvação e paz
a todos, sobretudo a pessoas como a senhora, que Ele morreu na cruz.
Creia nestas verdades, e será curada e liberta do pecado.
Todos os presentes estavam admirados, ouvindo atentamente as
palavras que aquele estranho, ajoelhado ao lado da cama, dizia à enferma.
- Mas isto parece ser coisa muito simples! - respondeu a mulher. -
Será possível chegar a Jesus tão facilmente?
- Sim, é absolutamente possível. Nós, os seres humanos, costumamos
colocar obstáculos no caminho de Deus, e, conseqüentemente, impedimos
que Ele faça a obra em nossa vida. Porém, se a senhora quiser, eu posso
pedir a Ele que a cure e que escreva o seu nome no Livro da Vida.
A enferma aceitou. Daniel Berg então pediu que todos curvassem a
cabeça reverentemente, e, orientando a enferma a acompanhá-lo em
oração, ergueu sua voz aos céus. Após a oração, confessando estar
sentindo um indizível refrigério em sua alma, a senhora adormeceu.
Ao sair daquela casa, o missionário deixou uma nova criatura em
Jesus Cristo. Tempos depois, vários parentes daquela senhora se
converteram ao Evangelho, e o seu lar foi transformado em uma
Assembléia de Deus!
Resgatando almas para Jesus
Muitas foram as experiências vividas por Daniel Berg durante sua
longa caminhada margeando a estrada de ferro Belém-Bragança. Por ele ter
sido perseverante, e acreditado que a chama pentecostal em breve
irromperia em inúmeros pontos do Brasil, e por não se ter entristecido com
as afrontas e agressões físicas, as sementes plantadas germinaram e
floresceram. E os frutos do seu labor perseverante estão sendo colhidos há
mais de 70 anos em todo o território brasileiro.
Evangelizando as cidades e os lugarejos que encontrava ao longo da
Belém-Bragança, "o estrangeiro que vendia Bíblias" caminhava anunciando
a Luz Eterna que redime os corações. E era ouvindo a Palavra de Deus que
muitos adversários do Evangelho se convertiam e saíam por sua vez, a
levar a outros a mensagem de salvação. Como fruto daquela dificultosa
viagem, em pouco tempo vinte Assembléias de Deus surgiram entre Belém
e Bragança.
E assim, apesar das barreiras erguidas por todos os lados; apesar das
perseguições e das agressões físicas (certa vez jogaram lama no rosto de
Daniel, quando ele estava pregando), a obra de Deus cresceu portentosamente,
avivada pela chama do Espírito Santo.
De Bragança, Daniel partiu para levar o Evangelho aos moradores de
centenas de casebres construídos em plena selva. Deixou ruas e estradas
para trás, e passou a caminhar por veredas estreitas, por caminhos
desconhecidos, por trilhas abertas na floresta tropical. Ali, gigantescas
árvores erguiam possantemente, formando, no alto, em todas as direções
da selva, um teto de folhagem que só permitia, num e noutro lugar, a
filtragem de alguns raios solares. Não existe sol do meio-dia nas florestas.
A fraca luminosidade sob as árvores dá a impressão de se estar sempre em
pleno entardecer.
Conduzindo duas malas repletas de Novos Testamentos e Bíblias,
Daniel caminhou pela selva à procura de almas para o reino de Deus. Logo
aprendeu que os moradores daquela região costumavam construir suas
casas nas proximidades de clareiras e nas margens dos rios.
Próximo a uma daquelas humildes casas de palha, certa vez ele se
deparou com um grupo de crianças que brincavam. Depois de conquistarlhes
a confiança, Daniel ficou sabendo, através delas, que a mãe de um
rapazinho ali presente havia morrido naquele dia. Conduzido por esse
rapaz, Daniel entrou naquela casa onde algumas pessoas choravam ao
redor da morta. Leu um trecho da Bíblia sobre a ressurreição; orou;
confortou o dono da casa e ganhou aquela família para Jesus.
O Evangelho anunciado sob perseguições
Antes de se afastar daquela localidade, Daniel foi vítima de um
atentado, mas o Senhor fez com que os homens sanguinários o
confundissem com um morador daquela região. Porém, apesar das
perseguições e da neutralidade da autoridade policial local, um? pequena
congregação da Assembléia de Deus surgiu ali.
Após certificar-se de que a igreja que por ele fora estabelecida estava
firmada em Jesus Cristo e cheia do poder de Cristo, Daniel despediu-se dos
irmãos e partiu, seguindo a direção que o Espírito Santo lhe indicava. Para
atingir o lugarejo mais próximo, era necessário alugar um barco e
atravessar um grande rio. Na outra margem erguia-se a selva e seus
inumeráveis perigos.
O Evangelho nas selvas
Conversando com o barqueiro que o conduzia à margem, Daniel ficou
sabendo que naquela região havia cobras gigantescas, onças pintadas e
bandos de jacarés.
- Não conheço esta região, mas isso não me causa medo algum, pois
Jesus está comigo - disse Daniel ao barqueiro. E passou a fazer uma
apresentação mais detalhada de Jesus, como o melhor amigo. No final
daquela conversa, o barqueiro aceitou Cristo como seu Salvador. Sentados
diante um do outro, dentro do barco, Daniel leu um trecho da Bíblia e
pediu que o Senhor resgatasse aquela alma do pecado e da ignorância.
Quando chegaram à outra margem, o dia começava a escurecer. Os
sons característicos da selva saudaram Daniel Berg, que desembarcou
rapidamente, pegou suas duas malas, rejeitou as armas que o barqueiro
lhe ofereceu (ele estava conduzindo a mais possante de todas as armas - a
Bíblia) despediu-se dele e rumou para o estreito caminho que se iniciava ali
e se perdia no interior da selva.
Começou a andar apressadamente, pois em breve seria noite,<e ele
sabia que teria de atravessar um pântano. À medida que avançava, a
vereda tornava-se mais estreita. Cipós cruzavam-se de uma árvore a outra,
e havia galhos pelo chão, que lhe embaraçavam os passos. Mas ele
caminhava sob a luz do Altíssimo, e seu coração descansava na confiança
depositada em Deus. Alcançou o pântano, tirou os sapatos, arregaçou as
bainhas da calça e iniciou a dificultosa travessia, atolando-se aqui, caindo
ali, até chegar ao outro lado. Lavou-se rapidamente, calçou os sapatos e
continuou pela floresta.
Os sapatos começaram a calejar-lhe os pés. Ele os tirou
imediatamente. Foi incomodado pelas formigas, pisou em cactus, tentou
livrar-se dos espinhos maiores, mas teve de continuar caminhando, pois a
penumbra sob as árvores tornava-se cada vez mais densa, e havia os
perigos noturnos da selva. Sentia dores na planta dos pés, mas não podia
calçar os sapatos. Subitamente, estranhou ao ver que uma vala dividia o
caminho. - "Quem teria interesse em cavar uma vala no meio da selva?" -
pensou. Mas parou imediatamente de caminhar ao lembrar-se do aviso dos
irmãos: "Quando encontrar uma vala na estrada, principalmente se for em
terra mole, afaste-se dela, pois é o caminho da sucuri."
Ele ainda estava sob o efeito dessas palavras, quando a gigantesca
cobra apareceu à sua frente. A uma distância de menos de dois metros, a
sucuri ergueu a cabeça até a altura do rosto de Daniel, e começou a fazer
movimentos com o corpo, tentando hipnotizá-lo, como fazia com todas as
suas vítimas, antes de atacá-las. Paralisado pelo medo, o missionário
começou a clamar angustiosamente em espírito, pedindo que o Senhor o
livrasse daquele monstro pavoroso. O tempo parecia haver parado em toda
a selva. Um suor frio descia lentamente pelo rosto de Daniel, e ele
permanecia ali, parado diante da morte, clamando insistentemente a Deus.
Súbito, todo o corpo da sucuri estremeceu; ela desviou sua cabeça para o
lado, movimentou rapidamente seu enorme corpo, e sumiu por entre as
árvores.
Daniel glorificou o nome do Senhor por aquele grande livramento, e
reiniciou sua viagem, sentindo a alma leve e o coração cheio de júbilo e de
gratidão a Deus!
Quando conseguiu alcançar uma vereda um pouco mais larga, a
noite já se apossara completamente da floresta, e a escuridão era total.
Caminhando descalço, Daniel temia pisar em algum inseto venenoso ou ser
picado por uma cobra. De repente o urro de uma onça cortou o silêncio da
noite. 0 missionário parou e esperou que a fera desse outro sinal. A onça
urrou outra vez, em um lugar mais próximo dali. Subitamente começaram
a ser ouvidos os latidos de um cão, mas logo se transformaram em ganidos,
e em seguida silenciaram.
Daniel continuou a caminhar, os olhos prescrutando a densa
escuridão da selva, os ouvidos atentos aos ruídos noturnos, esperando a
onça urrar a qualquer momento.
Inesperadamente, uma pequena luz se movimentou por entre as
árvores, e começou a se aproximar dele. Era uma lamparina de querosene.
O homem que a conduzia olhou desconfiado para Daniel, mas logo adquiriu
confiança ao ser cumprimentado pelo missionário. Após trocarem
algumas palavras, o homem ergueu a lamparina acima de sua cabeça e
apontou para os restos sanguinolentos de um animal que jazia morto há
alguns metros dali, e disse:
- Era o meu cachorro. Ele nunca enfrentara a onça diretamente. Mas
hoje algo o levou a enfrentar a fera até a morte.
Imediatamente Daniel entendeu que Deus usara aquele cachorro
para livrá-lo das garras assassinas da onça. Após convidar o missionário a
hospedar-se em sua casa, o caboclo falou:
- O senhor deve ter uma arma bem possante, pois só estando bem
armado alguém teria coragem de andar por esses lados, cheios de cobras e
onças.
- Sim, realmente eu ando bem armado. A minha arma é esta -
respondeu Daniel, mostrando-lhe a Bíblia.
Caminharam até chegar diante de uma casinha humilde, de paredes
de barro e de varas (taipa), com teto de palha. Ali morava aquele homem
com a esposa e filhos. Eles arranjaram água para o missionário lavar os
pés, ajudaram-no a se livrar dos espinhos maiores (no outro dia, o ajudariam
a tirar os menores), prepararam-lhe uma rápida refeição e
providenciaram um lugar onde ele pudesse repousar aquela noite. Naquela
casa o Senhor mais uma vez livrou Daniel de ser picado por uma cobra. No
dia seguinte, após presentear o caboclo com uma Bíblia, Daniel prosseguiu
sua viagem, sabendo que deixara a semente do Evangelho plantada
naqueles corações.
Caminhou até o anoitecer, quando parou para dormir em uma
cabana sem teto. A chuva que caiu naquela madrugada deu-lhe a
impressão de que a água arrastaria a cabana. Porém seu coração estava
tranqüilo, pois ele sabia que as Bíblias estavam bem protegidas dentro da
mala. Mas as roupas que usava só secaram algumas horas depois, quando
ele reiniciou a viagem até chegar a um lugarejo, onde um pequeno grupo de
irmãos o recebeu.
Naquele vilarejo, Daniel realizou cultos ouvindo urros de onças e
gritos de outros animais bem próximo da casa onde os irmãos se reuniam.
Segurando em uma das mãos a lamparina de querosene e empunhando a
Bíblia com a outra, Daniel Berg lia a Palavra de Deus diante da pequena
congregação. Por não dispor das mãos livres, os mosquitos picavam o seu
rosto, pescoço e braços. Foi em um desses cultos que ele contraiu malária.
Debilitado e sentindo febre e calafrios por todo o corpo, o missionário ficou
acamado durante vários dias. No intuito de reanimá-lo, os irmãos
chegaram até a preparar-lhe um jantar especial, cujo prato principal era
uma das iguarias da selva: um macaco cozido! Agradecendo a gentileza dos
irmãos, o missionário confessou não estar com apetite.
Alguns dias depois, Daniel foi reconduzido a Belém em companhia de
dois irmãos (um deles fora enviado por Gunnar Vingren, que dias antes
recebera uma carta de Daniel, onde este lhe falava do seu estado de saúde).
Os três viajantes atravessaram a selva, foram transportados pelo
mesmo barqueiro que fizera a travessia de Daniel Berg, chegaram em terra
firme e caminharam até a estrada de ferro onde Gunnar Vingren os
esperava. Daniel foi conduzido à casa de Vingren, e lá ficou, tendo crises de
febre até que o Senhor o curou. (Alguns meses depois, o missionário tornou
a contrair a doença, mas, então o Senhor o curou de uma vez por todas.)
Deus ainda usou inúmeras vezes o seu servo no meio dos perigos da
selva, dos rios caudalosos e de homens sanguinários, até chamá-lo, em
1963, para as mansões eternas. Mas nem o naufrágio que sofreu, pela
correnteza de um perigoso rio, ao navegar em uma pequena canoa, nem as
dificuldades enfrentadas durante as viagens no barco Boas-Novas, nem as
palavras e os gestos ameaçadores que lançaram sobre ele e Vingren,
quando visitavam a ilha de Marajó, fizeram-no desistir do empreendimento
maravilhoso de levar a Palavra de Deus aos corações de muitos daqueles
que viviam em pequenas cidades e entre rios e florestas daquelas regiões
longínquas.
Na condição de evangelista e primeiro colportor pentecostal no Brasil,
Daniel Berg avançou pelas selvas adentro, alcançou casas isoladas e
lugarejos de difícil acesso; caminhou centenas de quilômetros a pé,
navegou pelos rios do Amazonas e do Pará, sob o sol, sob a chuva, de noite
e de dia, por veredas estreitas e mato fechado, enfrentando os mosquitos
transmissores da malária, os perigos e as surpresas da floresta e do
coração do homem mau, e realizando um trabalho superior ao de Fernão
Dias Paes Leme, o bandeirante caçador de esmeraldas, pois pescava almas
preciosas para o reino de Deus.
À semelhança do grande bandeirante, ele também desbravou o
desconhecido, mas tão-somente à procura de almas, de "esmeraldas"
resgatadas das impurezas da terra para serem conduzidas aos tesouros do
Céu. E dele pode-se dizer o mesmo que Olavo Bilac disse de Fernão Leme:
"Cada passada sua era um caminho que surgia." Pelas veredas do
Evangelho dificultosamente abertas, germinaram, como sementes férteis,
suas gotas de suor, suas lágrimas, a fome, as vigílias. E hoje, sob as mãos
abençoadoras de Cristo, quando a Assembléia de Deus cresce em todo o
Brasil, as inúmeras atividades evangelísticas reascendem continuamente
nos corações de todos os pentecostais, a esperança de um dia, nas ruas da
Jerusalém Celestial, podermos nos encontrar com o nosso irmão Daniel,
aquele que, para levar a semente de vida eterna ao coração de milhares de
brasileiros, enfrentou os perigos das selvas amazônicas.

(Extraido do Livro "Eles andaram com Deus",Jefferson Magno Costa)