A PAZ DO SENHOR!

DAVI BRAINED - UM ARAUTO AOS PELES-VERMELHAS (1718-1747)

Certo jovem, franzino de corpo, mas tendo na alma o fogo
do amor aceso por Deus, encontrou-se na floresta, para ele
desconhecida. Era tarde e o sol já declinava até quase
desaparecer no horizonte, quando o viajante, enfadado da longa
viagem, avistou a fumaça das fogueiras dos índios "pelesvermelhas".
Depois de apear e amarrar seu cavalo, deitou-se no
chão para passar a noite, agonizando em oração.
Sem ele o saber, alguns dos silvícolas o haviam seguido
silenciosamente, como serpentes, durante a tarde. Agora
estacionavam atrás dos troncos das árvores para contemplar a
cena misteriosa de um vulto de cara pálida, sozinho, prostrado
no chão, clamando a Deus.
Os guerreiros da vila resolveram matá-lo, sem demora,
pois, diziam, os brancos davam uma aguardente aos pelesvermelhas,
para, enquanto bêbados, levar-lhes as cestas e as
peles de animais, e roubar-lhes as terras. Mas depois de
cercarem furtivamente o missionário, que orava,prostrado, e
ouvirem como clamava ao "Grande Espírito", insistindo que lhes
salvasse a alma, eles partiram tão secretamente como
chegaram.
No dia seguinte, o moço, não sabendo o que acontecera
em redor, enquanto orava no ermo, foi recebido na vila de uma
maneira não esperada. No espaço aberto entre as "wigwams"
(barracas de peles) os índios o cercaram e o moço, com o amor
de Deus ardendo na alma, leu o capítulo 53 de Isaías. Enquanto
pregava, Deus respondeu a sua oração da noite anterior e os
silvícolas ouviram o sermão, com lágrimas nos olhos.
Esse cara-pálida chamava-se Davi Brainerd. Nasceu em 20
de abril de 1718. Seu pai faleceu quando Davi tinha 9 anos de
idade, e sua mãe, filha dum pregador, faleceu quando ele tinha
14 anos.
Acerca de sua luta com Deus, no tempo da sua conversão,
na idade de vinte anos, ele escreveu.
"Designei um dia para jejuar e orar, e passei esse dia
clamando quase incessantemente a Deus, pedindo misericórdia
e que ele abrisse meus olhos para a enormidade do pecado e o
caminho para a vida em Jesus Cristo... Contudo, continuei a
confiar nas boas obras... Então, uma noite andando na roça, foi
me dada uma visão da grandeza do meu pecado, parecendo-me
que a terra se abrira por baixo dos meus pès para me sepultar e
que a minha alma iria ao Inferno antes de eu chegar em casa...
Certo dia, estando longe do colégio, no campo, sozinho em
oração, senti tanto gozo e doçura em Deus, que, se eu devesse
ficar neste mundo vil, queria permanecer contemplando a glória
de Deus. Senti na alma um profundo amor ardente para com
todos os homens e anelava que eles desfrutassem desse mesmo
amor de Deus.
"No mês de agosto, depois, senti-me tão fraco e doente,
como resultado de aplicar-me demais aos estudos, que o diretor
do colégio me aconselhou a voltar para casa. Estava tão fraco
que tive algumas hemorragias. Senti-me perto da morte, mas
Deus renovou em mim o conhecimento e o gosto das coisas
divinas. Anelava tanto a presença de Deus e ficar livre do
pecado, que, ao melhorar, preferia morrer a voltar ao colégio, e
me afastar de Deus...Oh! uma hora com Deus excede
infinitamente todos os prazeres do mundo."
De fato, depois de voltar ao colégio, Brainerd esfriou em
espírito, mas o Grande Avivamento, dessa época, alcançou a
cidade de New Haven, o colégio de Yale e o coração de Davi
Brainerd. Ele tinha o costume de escrever diariamente uma
relação dos acontecimentos mais importantes da sua vida,
passados durante o dia. É por esses diários escritos para si
próprio e não para o mundo ler, que sabemos da sua vida íntima
de profunda comunhão com Deus. Os seguintes poucos trechos
servem como amostras do que ele escreveu em muitas páginas
de seu diário e descobrem algo de sua luta com Deus, enquanto
estudava para o ministério:
"Fui tomado repentinamente pelo horror da minha miséria.
Então clamei a Deus, pedindo que me purificasse da minha
extrema imundícia. Depois a oração se tornou mui preciosa para
mim. Ofereci-me alegremente para passar os maiores
sofrimentos pela causa de Cristo, mesmo que fosse para ser
desterrado entre os pagãos, desde que pudesse ganhar suas
almas. Então Deus me deu o espírito de lutar em oração pelo
reino de Cristo no mundo.
"Retirei-me cedo, de manhã, para a floresta, e foi-me
concedido fervor em rogar pelo avanço do reino de Cristo no
mundo. Ao meio-dia, ainda combatia em oração a Deus, e sentia
o poder do divino amor na intercessão.
"Passei o dia em jejum e oração, implorando que Deus me
preparasse para o ministério, e me concedesse auxílio divino e
direção, e que ele me enviasse para a seara no dia que ele
designasse. Pela manhã, senti poder na intercessão pelas almas
imortais e pelo progresso do reino do querido Senhor e Salvador
no mundo... À tarde, Deus estava comigo de verdade. Quão
bendita a sua companhia! Ele me concedeu agonizar em oração
até ficar com a roupa encharcada de suor, apesar de eu me
achar na sombra, e de soprar um vento fresco. Sentia a minha
alma grandemente extenuada pela condição do mundo:
esforçava-me para arrebatar multidões de almas. Sentia-me
mais dilatado pelos pecadores do que pelos filhos de Deus,
contudo anelava gastar a minha vida clamando por
ambos."Passei duas horas agonizando pelas almas imortais.
Apesar de ser ainda muito cedo, meu corpo estava molhado de
suor... Se eu tivesse mil vidas, a minha alma as teria dado pelo
gozo de estar com Cristo...
"Dediquei o dia para jejuar e orar, implorando a Deus que
me dirigisse e me abençoasse na grande obra que tenho perante
mim, a de pregar o Evangelho. Ao anoitecer, o Senhor me visitou
maravilhosamente na oração; senti a minha alma angustiada
como nunca... Senti tanta agonia que me achava ensopado de
suor. Oh! e Jesus suou sangue pelas pobres almas! Eu anelava
mostrar mais e mais compaixão para com elas.
"Cheguei a saber que as autoridades esperam a
oportunidade de me prender e encarcerar por ter pregado em
New Haven. Fiquei mais sóbrio e abandonei toda a esperança de
travar amizade com o mundo. Retirei-me para um lugar oculto
na floresta e coloquei o caso perante Deus."
Completados os seus estudos para o ministério, ele
escreveu:
"Preguei o sermão de despedida ontem, à noite. Hoje, pela
manhã orei em quase todos os lugares por onde andei, e, depois
de me despedir dos amigos, iniciei a viagem para o habitat dos
índios."
Essas notas do diário revelam, em parte, a sua luta com
Deus enquanto estudava para o ministério. Um dos maiores
pregadores atuais, referindo-se a esse diário, declarou: "Foi
Brainerd quem me ensinou a jejuar e orar. Cheguei a saber que
se fazem maiores coisas por meio de contato cotidiano com
Deus do que por pregações."
No início da história da vida de Brainerd, já relatamos
como Deus lhe concedeu entrada entre os silvícolas violentos,
em resposta a uma noite de oração, prostrado em terra, nas
profundezas da floresta. Mas, apesar de os índios lhe darem a
toda hospitalidade, concedendo-lhe um lugar para dormir sobre
um pouco de palha e, ouvirem o sermão, comovidos, Brainerd
não estava satisfeito e continuava a lutar em oração, como
revela seu diário:
"Continuo a sentir-me angustiado. À tarde preguei ao
povo, mas fiquei mais desanimado acerca do trabalho do que
antes; receio que seja impossível alcançar as almas. Retirei-me e
derramei a minha alma pedindo misericórdia, mas sem sentir
alívio.
"Completo vinte e cinco anos de idade hoje. Dói-me a
alma ao pensar que vivi tão pouco para a glória de Deus. Passei
o dia na floresta sozinho, derramando a minha queixa perante o
Senhor.
"Cerca das nove horas, saí para orar na mata. Depois do
meio-dia, percebi que os índios estavam se preparando para
uma festa e uma dança... Em oração, senti o poder de Deus e a
minha alma extenuada como nunca antes na minha vida. Senti
tanta agonia e insisti com tanta veemência que, ao levantar-me,
só consegui andar com dificuldade. O suor corria-me pelo rosto e
pelo corpo. Reconheci que os pobres índios se reuniam para
adorar demônios e não a Deus; esse foi o motivo de eu clamar a
Deus, que se apressasse em frustrar a reunião idólatra. Assim,
passei a tarde orando incessantemente, pedindo o auxílio divino
para que eu não confiasse em mim mesmo. O que experimentei,
enquanto orava, foi maravilhoso. Parecia-me que não havia nada
de importância em mim, a não ser santidade de coração e vida,
e o anelo pela conversão dos pagãos a Deus. Desapareceram
todos os cuidados, receios e anelos; todos juntos pareciam-me
de menor importância que o sopro do vento. Anelava que Deus
adquirisse para si um nome entre os pagãos e lhe fiz o meu
apelo com a maior ousadia, insistindo em que ele reconhecesse
que eu 'o preferia à minha maior alegria.' De fato, não me
importava onde ou como morava, nem da fadiga que tinha de
suportar, se pudesse ganhar almas para Cristo. Continuei assim
toda a tarde e toda a noite."
Assim revestido, Brainerd, pela manhã, voltou da mata
para enfrentar os índios, certo de que Deus estava com ele,
como estivera com Elias no monte Carmelo. Ao insistir com os
índios para que abandonassem a dança, eles, em vez de matá-lo,
desistiram da orgia e ouviram a sua pregação, de manhã e à
tarde.
Depois de sofrer como poucos sofrem, depois de se esforçar de
noite e de dia, depois de passar horas inumeráveis em jejum e
oração, depois de pregar a Palavra "a tempo e fora de tempo",
por fim, abriram-se os céus e caiu o fogo. Os seguintes excertos
do seu diário descrevem algumas dessas experiências gloriosas:
"Passei a maior parte do dia em oração, pedindo que o
Espírito fosse derramado sobre o meu povo... Orei e louvei com
grande ousadia, sentindo grande peso pela salvação das
preciosas almas.
"Discursei à multidão extemporaneamente sobre Isaías
53.10: Todavia, o Senhor agradou moê-lo'. Muitos dos ouvintes
entre a multidão de três a quatro mil, ficaram comovidos a ponto
de haver um 'grande pranto, como o pranto de Hadadrimom'.
[Ver Zacarias 12.11)
"Enquanto eu andava a cavalo, antes de chegar ao lugar
para pregar, senti o meu espírito restaurado e a minha alma
revestida com o poder para clamar a Deus, quase sem cessar,
por muitos quilômetros a fio.
"De manhã, discursei aos índios onde nos hospedamos.
Muitos ficaram comovidos e, ao falar-lhes acerca da salvação da
sua alma, as lágrimas correram abundantemente e eles
começaram a soluçar e a gemer. À tarde, voltei ao lugar onde
lhes costumava pregar; eles ouviram com a maior atenção quase
até o fim. Nem a décima parte dos ouvintes pôde conter-se de
derramar lágrimas e clamar amargamente. Quanto mais eu
falava do amor e compaixão de Deus, ao enviar seu Filho para
sofrer pelos pecados dos homens, tanto mais aumentava a
angústia dos ouvintes. Foi para mim uma surpresa notar como
seus corações pareciam traspassados pelo terno e comovente
convite do Evangelho, antes de eu proferir uma única palavra de
terror.
"Preguei aos índios sobre Isaías 53.3-10. Muito poder
acompanhava a Palavra e houve grande convicção entre os
ouvintes; contudo, não tão geral como no dia anterior. Mas a
maioria ficou comovida e em grande angústia de alma; alguns
não podiam caminhar, nem ficar em pé: caíam no chão como se
tivessem o coração traspassado e clamavam sem cessar,
pedindo, misericórdia... Os que vieram de lugares distantes
foram levados logo à convicção, pelo Espírito de Deus.
"À tarde, preguei sobre Lucas 15.16-23. Havia muita
convicção visível entre os ouvintes, enquanto eu discursava;
mas, ao falar particularmente, depois, a alguns que se
mostravam comovidos, o poder de Deus desceu sobre o
auditório 'como um vento veemente e impetuoso e varreu tudo
de uma maneira espetacular.
"Fiquei em pé, admirado da influência que se apoderou do
auditório quase totalmente. Parecia, mais que qualquer outra
coisa, a força irresistível de uma grande correnteza, ou dilúvio
crescente, que derrubava e varria tudo que encontrava na sua
frente.
"Quase todos oravam e clamavam, pedindo misericórdia, e
muitos não podiam ficar em pé. A convicção que cada um sentiu
foi tão grande, que pareciam ignorar por completo os outros em
redor, mas cada um continuava a orar por si mesmo.
"Lembrei-me de Zacarias 12.10-12, porque havia grande
pranto como o pranto de 'Hadadrimom', parecendo que cada um
pranteava à parte.
"Parecia-me um dia muito semelhante ao dia em que Deus
mostrou seu poder a Josué (Josué 10.14), porque era um dia
diferente de qualquer dia que tinha presenciado antes, um dia
em que Deus fez muito para destruir o reino das trevas entre
esse povo".
É difícil reconhecer a magnitude da obra de Davi Brainerd
entre as diversas tribos de índios, nas profundezas das florestas;
ele não entendia os seus idiomas. Se lhes transmitia a
mensagem de Deus ao coração, deveria achar alguém que
pudesse servir como intérprete. Passava dias inteiros
simplesmente orando para que viesse sobre ele o poder do
Espírito Santo com tanto poder, que esse povo não pudesse
resistir à mensagem. Certa vez teve que pregar por meio de um
intérprete tão bêbado, que quase não podia ficar em pé,
contudo, vintenas de almas foram convertidas por esse sermão.
Ele andava, às vezes, perdido de noite no ermo,
apanhando chuva e atravessando montanhas e pântanos.
Franzino de corpo, cansava-se nas viagens. Tinha que suportar o
calor do verão e o intenso frio do inverno. Dias a fio passava-os
com fome. Já começava a sentir a saúde abalada e estava a
ponto de casar-se (sua noiva era Jerusa Edwards, filha de Jônatas
Edwards) e estabelecer um lar entre os índios convertidos ou
voltar e aceitar o pastorado de uma igreja que o convidava.
Contudo, reconhecia que não podia viver, por causa da sua
doença, mais que um ou dois anos e resolveu então ''arder até o
fim".
Assim, depois de ganhar a vitória em oração, clamou: "Eisme
aqui, Senhor, envia-me a mim até os confins da terra; enviame
aos selvagens do ermo; envia-me para longe de tudo que se
chama conforto da terra; envia-me mesmo para a morte, se for
no teu serviço e para promover o teu reino..."
Então acrescentou: "Adeus amigos e confortos terrestres,
mesmo os mais anelados de todos. Se o Senhor quiser, gastarei
a minha vida, até os últimos momentos, em cavernas e covas da
terra, se isso servir para o progresso do Reino de Cristo."
Foi nessa ocasião que escreveu: "Continuei lutando com
Deus em oração pelo rebanho aqui e, especialmente, pelos
índios em outros lugares, até a hora de deitar-me. Oh! como
senti ser obrigado a gastar o tempo dormindo! Anelava ser uma
chama de fogo, constantemente ardendo no serviço divino e
edificando o reino de Deus, até o último momento, o momento
de morrer."
Por fim, depois de cinco anos de viagens árduas no ermo,
de aflições inumeráveis e de sofrer dores incessantes no corpo,
Davi Brainerd, tuberculoso e com as forças físicas quase
inteiramente esgotadas, conseguiu chegar à casa de Jônatas
Edwards.
O peregrino já completara a sua carreira terrestre e
esperava o carro de Deus para levá-lo à Glória. Quando, no seu
leito de sofrimento, viu alguém entrar no quarto com a Bíblia,
exclamou: "Oh! o querido Livro! Breve hei de vê-lo aberto. Os
seus mistérios me serão então desvendados!"
Minguando sua força física e aumentando sua percepção
espiritual, falava com mais e mais dificuldade: "Fui feito para a
eternidade. Como anelo estar com Deus e prostrar-me perante
Ele! Oh! que o Redentor pudesse ver o fruto do trabalho da sua
alma e ficar satisfeito! Oh! vem,Senhor Jesus! Vem depressa!
Amém!" - e dormiu no Senhor.
Depois desse acontecimento, a noiva de Brainerd, Jerusa
Edwards, começou a murchar como uma flor e, quatro meses
depois também foi morar na cidade celeste. Dum lado do seu
túmulo, está o de Davi Brainerd e do outro lado está o túmulo de
seu pai, Jônatas Edwards.
O desejo veemente da vida de Davi Brainerd era o de
arder como uma chama, por Deus, até o último momento, como
ele mesmo dizia: "Anelo ser uma chama de fogo,
constantemente ardendo no serviço divino, até o último
momento, o momento de falecer."
Brainerd findou a sua carreira terrestre aos vinte e nove
anos. Contudo apesar de sua grande fraqueza física, fez mais
que a maioria dos homens faz em setenta anos.
Sua biografia, escrita por Jônatas Edwards e revisada por
João Wesley, teve mais influência sobre a vida de A. J. Gordon do
que qualquer outro livro, exceto a Bíblia. Guilherme Carey leu a
história da sua obra e consagrou a sua vida ao serviço de Cristo,
e nas trevas da Índia! Roberto McCheyne leu o seu diário e
gastou a sua vida entre os judeus. Henrique Martyn leu a sua
biografia e se entregou para consumir-se dentro de um período
de seis anos e meio no serviço de seu Mestre, na Pérsia.
O que Davi escreveu a seu irmão, Israel Brainerd, é para
nós um desafio à obra missionária: "Digo, agora, morrendo, não
teria gasto a minha vida de outra forma, nem por tudo que há no
mundo."
Guilherme Carey
Pai das missões modernas
(1761-1834)
O menino Guilherme Carey, era apaixonado pelo estudo
da natureza. Enchia seu quarto de coleções de insetos, flores,
pássaros, ovos, ninhos, etc. Certo dia, ao tentar alcançar um
ninho de passarinhos, caiu de uma árvore alta. Ao experimentar
a segunda vez, caiu novamente. Insistiu a terceira vez: caiu e
quebrou uma perna. Algumas semanas depois, antes de a perna
sarar, Guilherme entrou em casa com o ninho na mão. - "Subiste
à árvore novamente?!" -exclamou sua mãe. - "Não pude evitar,
tinha de possuir o ninho, mamãe" - respondeu o menino.
Diz-se que Guilherme Carey, fundador das missões atuais,
não era dotado de inteligência superior e nem de qualquer dom
que deslumbrasse os homens. Entretanto, foi essa característica
de persistir, com espírito indômito e inconquistável, até
completar tudo quanto iniciara, que fez o segredo do
maravilhoso êxito da sua vida.
Quando Deus o chamava a iniciar qualquer tarefa, permanecia
firme, dia após dia, mês após mês e ano após ano,até
acabá-la. Deixou o Senhor utilizar-se de sua vida, não somente
para evangelizar durante um período de quarenta e um anos no
estrangeiro, mas também para executar a façanha por incrível
que pareça, de traduzir as Sagradas Escrituras em mais que
trinta línguas.
O avô e o pai do pequeno Guilherme eram sucessivamente
professor e sacristão (Igreja Anglicana) da Paróquia. Assim o filho
aprendeu o pouco que o pai podia ensinar-lhe. Mas não satisfeito
com isso, Guilherme continuou seus estudos sem mestre.
Aos doze anos adquiriu um exemplar do Vocabulário
Latino, por Dyche,. o qual decorou. Aos quatorze anos iniciou a
carreira como aprendiz de sapateiro. Na loja encontrou alguns
livros, dos quais se aproveitou para estudar. Assim iniciou o
estudo do grego. Foi nesse tempo que chegou a reconhecer que
era um pecador perdido, e começou a examinar cuidadosamente
as Escrituras.
Não muito depois da sua conversão, com 18 anos de
idade, pregou o seu primeiro sermão. Ao reconhecer que o
batismo por imersão é bíblico e apostólico, deixou a denominação
a que pertencia. Tomava emprestados livros para
estudar e, apesar de viver em pobreza, adquiria alguns livros
usados. Um de seus métodos para aumentar o conhecimento de
outras línguas, consistia em ler diariamente a Bíblia em latim,
em grego e em hebraico.
Com a idade de vinte anos, casou-se. Porém os membros
da igreja onde pregava eram pobres e Carey teve de continuar
seu ofício de sapateiro para ganhar o pão cotidiano. O fato de o
senhor Old, seu patrão, exibir na loja um par de sapatos
fabricados por Guilherme, como amostra, era prova da
habilidade do rapaz.
Foi durante o tempo que ensinava geografia em Moulton,
que Carey leu o livro As Viagens do Capitão Cook e Deus falou à
sua alma acerca do estado abjeto dos pagãos sem o Evangelho.
Na sua tenda de sapateiro afixou na parede um grande mapamundi,
que ele mesmo desenhara cuidadosamente. Incluíra
neste mapa todos os dizeres disponíveis: o número exato da
população, a flora e a fauna, as características dos indígenas,
etc., de todos os países.Enquanto consertava sapatos, levantava
os olhos, de vez em quando, para o mapa e meditava sobre as
condições dos vários povos e a maneira de os evangelizar. Foi
assim que sentiu mais e mais a chamada de Deus para preparar
a Bíblia, para os muitos milhões de indus, na própria língua
deles.
A denominação a que Guilherme pertencia, depois de
aceitar o batismo por imersão, achava-se em grande decadência
espiritual. Isto foi reconhecido por alguns dos ministros, os quais
concordaram em passar "uma hora em oração na primeira
segunda-feira de todos os meses" pedindo de Deus um grande
avivamento da denominação. De fato esperavam um
despertamento, mas, como acontece muitas vezes, não
pensaram na maneira em que Deus lhes responderia.
As igrejas de então não aceitavam a idéia, que consideravam
absurda, de levar o Evangelho aos pagãos. Certa vez,
numa reunião do ministério, Carey levantou-se e sugeriu que
ventilassem este assunto: O dever dos crentes em promulgar o
Evangelho às nações pagãs. O venerável presidente da reunião,
surpreendido, pôs-se em pé e gritou: "Jovem, sente-se! Quando
agradar a Deus converter os pagãos, ele o fará sem o seu
auxílio, nem o meu."
Porém o fogo continuou a arder na alma de Guilherme
Carey. Durante os anos que se seguiram esforçou-se ininterruptamente,
orando, escrevendo e falando sobre o assunto de
levar Cristo a todas as nações. Em maio de 1792, pregou seu
memorável sermão sobre Isaías 54.2,3: "Amplia o lugar da tua
tenda, e as cortinas das tuas habitações se estendam; não o
impeças; alonga as tuas cordas, e firma bem as tuas estacas.
Porque transbordarás à mão direita e à esquerda; e a tua
posteridade possuirá as nações e fará que sejam habitadas as
cidades assoladas."
Discursou sobre a importância de esperar grandes coisas
de Deus e, em seguida, enfatizou a necessidade de tentar
grandes coisas para Deus.
O auditório sentiu-se culpado de negar o Evangelho aos
países pagãos, a ponto de "levantar as vozes em choro." Foi
então organizada a primeira sociedade missionária na história
das igrejas de Cristo para a pregação do Evangelho entre os
povos nunca evangelizados. Alguns como Brainerd, Eliot e
Schwartz já tinham ido pregar em lugares distantes, mas sem
que as igrejas se unissem para sustentá-los.
Apesar de a sociedade ser o resultado da persistência e
esforços de Carey, ele mesmo não tomou parte na sua formação.
O seguinte, porém, foi escrito acerca dele nesse tempo:
"Aí está Carey, de estatura pequena, humilde de espírito,
quieto e constante; tem transmitido o espírito missionário aos
corações dos irmãos, e agora quer que saibam da sua prontidão
em ir onde quer que eles desejem, e está bem contente que
formulem todos os planos".
Nem mesmo com esta vitória, foi fácil para Guilherme
Carey concretizar o sonho de levar Cristo aos países que jaziam
nas trevas. Dedicava o seu espírito indômito a alcançar o alvo
que Deus lhe marcara.
A igreja onde pregava não consentia que deixasse o
pastorado: somente com a visita dos membros da sociedade a
ela é que este problema foi resolvido. No relatório da igreja
escreveram: "Apesar de concordar com ele, não achamos bom
que nos deixe aquele a quem amamos mais que a nossa própria
alma."
Entretanto, o que mais sentiu foi quando a sua esposa
recusou terminantemente deixar a Inglaterra com os filhos.
Carey estava tão certo de que Deus o chamava para trabalhar na
Índia que nem por isso vacilou.
Havia outro problema que parecia insolúvel: Era proibida a
entrada de qualquer missionário na Índia. Sob tais circunstâncias
era inútil pedir licença para entrar. Nestas condições,
conseguiram embarcar sem esse documento. Infelizmente o
navio demorou algumas semanas e, pouco antes de partir, os
missionários receberam ordem de desembarcar.
A sociedade missionária, apesar de tantos contratempos,
continuou a confiar em Deus; conseguiram granjear dinheiro e
compraram passagem para a Índia em um navio dinamarquês.
Uma vez mais Carey rogou à sua querida esposa que o
acompanhasse. Ela ainda persistia na recusa e nosso herói, ao
despedir-se dela, disse: "Se eu possuísse o mundo inteiro, daria
alegremente tudo pelo privilégio de levar-te e os nossos queridos
filhos comigo; mas o sentido do meu dever sobrepuja todas as
outras considerações. Não posso voltar para trás sem incorrer
em culpa a minha alma."
Porém, antes de o navio partir, um dos missionários foi à
casa de Carey. Grande foi a surpresa e o regozijo de todos ao
saberem que esse missionário conseguiu induzir a esposa de
Carey a acompanhar o seu marido. Deus comoveu o coração do
comandante do navio a levá-la em companhia dos filhos, sem
pagar passagem.
Certamente a viagem a vela não era tão cômoda como
nos vapores modernos. Apesar dos temporais, Carey aproveitouse
do ensejo para estudar o bengali e ajudar um dos
missionários na obra de verter o livro de Gênesis para a língua
bengaleza.
Guilherme Carey aprendeu suficiente o bengali, durante a
viagem, para conversar com o povo. Pouco depois de
desembarcar, começou a pregar e os ouvintes vinham para ouvir
em número sempre crescente.
Carey percebeu a necessidade imperiosa de o povo possuir
a Bíblia na própria língua e, sem demora, entregou-se à
tarefa de traduzi-la. A rapidez com que aprendeu as línguas da
Índia é uma admiração para os maiores lingüistas.
Ninguém sabe quantas vezes o nosso herói se mostrou
desanimadíssimo na Índia. A esposa não tinha interesse nos
esforços de seu marido e enlouqueceu. A maior parte dos
ingleses com quem Carey teve contato, o tinham como louco;
durante quase dois anos nenhuma carta da Inglaterra lhe chegou
às mãos. Muitas vezes faltava aos seus dinheiro e alimento. Para
sustentar a família, o missionário tornou-se lavrador da terra e
empregou-se em uma fábrica de anil.
Durante mais de trinta anos Carey foi professor de línguas
orientais no colégio de Fort Williams. Fundou também, o
Serampore College para ensinar os obreiros. Sob a sua direção, o
colégio prosperou, preenchendo um grande vácuo na
evangelização do país.
Ao chegar à Índia, Carey continuou os estudos que começara
quando menino. Não somente fundou a Sociedade de
Agricultura e Horticultura, mas criou um dos melhores jardins
botânicos, redigiu e publicou o "Hortus Bengalensis". O livro
"Flora Índica", outra de suas obras, foi considerada obra-prima
por muitos anos.
Não se deve concluir, contudo, que, para Guilherme Carey,
a horticultura fosse mais do que um passatempo. Passou,
também, muito tempo ensinando nas escolas de crianças
pobres. Mas, acima de tudo, sempre lhe ardia no coração o
desejo de se esforçar na obra de ganhar almas.
Quando um de seus filhos começou a pregar, Carey escreveu:
"Meu filho, Félix, respondeu à chamada para pregar o
Evangelho". Anos depois, quando esse filho aceitou o cargo de
embaixador da Grã Bretanha no Sião, o pai, desapontado e
angustiado, escreveu para um amigo: "Félix encolheu-se até
tornar-se um embaixador!"
Durante o período de quarenta e um anos, que passou na
Índia, não visitou a Inglaterra. Falava, embora com dificuldade,
mais de trinta línguas da Índia, dirigia a tradução das Escrituras
em todas elas e foi apontado ao serviço árduo de tradutor oficial
do governo. Escreveu várias gramáticas indianas e compilou
notáveis dicionários dos idiomas bengali, marati e sânscrito. O
dicionário do idioma bengali consta de três volumes e inclui
todas as palavras da língua, traçadas até a sua origem e
definidas em todos os seus sentidos.
Tudo isto era possível porque sempre economizava o
tempo, segundo se deduz do que escreveu seu biógrafo:
"Desempenhava estas tarefas hercúleas sem pôr em risco
a sua saúde, aplicando-se metódica e rigorosamente ao seu
programa de trabalho, ano após ano. Divertia-se, passando de
uma tarefa para outra. Dizia que se perde mais tempo,
trabalhando inconstante e indolentemente do que nas
interrupções de visitas. Observava, portanto, a norma de entrar,
sem vacilar, na obra marcada e de não deixar coisa alguma
desviar a sua atenção para qualquer outra coisa durante aquele
período."O seguinte escrito pedindo desculpas a um amigo pela
demora em responder-lhe a carta, mostra como muitas das suas
obras avançavam juntas:
"Levantei-me hoje às seis, li um capítulo da Bíblia
hebraica; passei o resto do tempo, até às sete, em oração. Então
assisti ao culto doméstico em bangali, com os criados. Enquanto
esperava o chá, li um pouco em persa com um munchi que me
esperava; li também, antes de comer, uma porção das Escrituras
em industani. Logo depois de comer sentei-me, com um pundite
que me esperava, para continuar a tradução do sânscrito para o
ramayuma. Trabalhamos até as dez horas, quando então fui ao
colégio para ensinar até quase as duas horas. Ao voltar para
casa, li as provas da tradução de Jeremias em bengali, só findando
em tempo para jantar. Depois do jantar, traduzi, ajudado pelo
pundite chefe do colégio, a maior parte do capítulo oito de
Mateus em sânscrito. Nisto fiquei ocupado até as seis. Depois
das seis assentei-me com um pundite de Telinga, para traduzir
do sânscrito para a língua dele. Às sete comecei a meditar sobre
a mensagem para um sermão e preguei em inglês, às sete e
meia. Cerca de quarenta pessoas assistiram ao culto, entre as
quais, um juiz do Sudder Dewany'dawlut. Depois do culto, o juiz
contribuiu com 500 rupias para a construção de um novo templo.
Todos os que assistiram ao culto tinham saído às nove horas;
sentei-me para traduzir o capítulo onze de Ezequiel para o
bengali. Findei às onze, e agora estou escrevendo esta carta. Depois,
encerrei o dia com oração. Não há dia em que disponha de
mais tempo do que isto, mas o programa varia."
Com o avançar da idade, seus amigos insistiam em que
diminuísse os seus esforços, mas a sua aversão à inatividade era
tal, que continuava trabalhando mesmo quando a força física
não dava para a necessária energia mental. Por fim, viu-se
obrigado a ficar de cama, onde continuava a corrigir as provas
das traduções.
Finalmente, em 9 de junho de 1834, com a idade de 73
anos, Guilherme Carey dormiu em Cristo.
A humildade era uma das características mais destacadas
da sua vida. Conta-se que, no zênite da fama, ouviu certo oficial
inglês perguntar cinicamente: - "O grande doutor Carey não era
sapateiro?" Carey, ao ouvir casualmente a pergunta, respondeu:
"- Não, meu amigo, era apenas um remendão."
Quando Guilherme Carey chegou à Índia, os ingleses
negaram-lhe permissão para desembarcar. Ao morrer, porém, o
governo mandou içar as bandeiras a meia haste em honra de um
herói que fizera mais para a Índia do que todos os generais
britânicos.
Calcula-se que traduziu a Bíblia para a terça parte dos
habitantes do mundo. Assim escreveu um de seus sucessores, o
missionário Wenger: "Não sei como Carey conseguiu fazer nem a
quarta parte das suas traduções. Faz cerca de vinte anos (em
1855), que alguns missionários, ao apresentarem o Evangelho no
Afeganistão (país da Ásia central), acharam que a única versão
que esse povo entendia era o Pushtoo, feita em Sarampore por
Carey."
O corpo de Guilherme Carey descansa, mas a sua obra

continua a servir de bênção a uma grande parte do mundo.

(Extraido do Livro Heróis da Fé,Orlando Boyer)